Crítica: Fullmetal Alchemist errou a receita de um bom live-action

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Imagem: Warner Bros.

Sempre que falamos de uma adaptação de uma obra dos mangás, a reação do público é a mesma. Primeiro, vem a esperança de ver nossos personagens favoritos em carne e osso nas telas; depois, a apreensão ao lembrar que praticamente nenhuma obra do gênero conseguiu fazer jus à original.

É em meio a esse cenário complicado que o diretor Fumihiko Sori, cujos “grandes” trabalhos envolveram a adaptação de “Ping Pong e “Bekushiro: 2077 Nihon Sakoku, recebeu a desafiadora tarefa de levar um dos mangás mais aclamados da história para as telas de cinema: nada menos do que “Fullmetal Alchemist”.

Fullmetal Alchemist animeFullmetal Alchemist recebeu duas adaptações para os animes: uma seguindo uma trama original e outra fiel à história do mangá. Ambas são obras-primas

A obra de Hiromu Arakawa conta a história de um mundo onde a alquimia não é simples charlatanismo. Com os círculos alquímicos certos, uma pessoa é capaz de transmutar um objeto em outro facilmente; isso desde que, é claro, respeite a regra primordial da Troca Equivalente: para se ter algo, é preciso sacrificar outro item de mesmo valor.

É aí que entram os irmãos Edward e Alphonse Elric, jovens gênios que, ainda crianças, tentaram quebrar um dos tabus da alquimia – reviver os mortos – para trazer sua falecida mãe de volta à vida. O plano infelizmente não dá certo, e ambos pagam seu preço por pisar onde apenas Deus deveria chegar. Ed perde seu braço e sua perna (que são substituídos pelas estilosas próteses automail), mas ganha o poder de fazer alquimia sem círculos, enquanto Alphonse tem sua alma presa a uma armadura, depois de perder todo o seu corpo no ritual.

Começa então a jornada dos garotos para recuperar seus corpos. Aliando-se ao Exército do que é uma clara alegoria a uma Alemanha nazista, Edward e Alphonse buscam nada menos do que a Pedra Filosofal, o lendário item capaz de ignorar as limitações da alquimia. Mal sabem eles, no entanto, que outros reservam planos maiores para os dois.

Achou a trama complexa? Pois pode ter certeza de que não está errado, mas é por isso que “Fullmetal Alchemist” fez tanto sucesso. Afinal, não são muitos os mangás que acabam por ganhar duas adaptações em anime no espaço de poucos anos e chegam a ter um longa-metragem em live-action disponibilizado recentemente no Netflix.

No entanto, quando falamos de um live-action, é quase impossível imaginar uma maneira de adaptar os 108 capítulos do mangá em apenas algumas horas, com tantos mistérios, tramoias, disputas políticas entre militares, reviravoltas e personagens profundos. E não foi dessa vez que tal façanha foi alcançada.

Alquimia de encher os olhos. Mas o resto...

Como otaku declarado e fã devoto da série (ela, de fato, ocupa a primeira posição entre minhas obras favoritas), o início do longa-metragem me acertou em cheio na parte visual. Embora não chegue ao nível de qualidade de uma superprodução hollywoodiana, “Fullmetal Alchemist” tem um trabalho razoável quando o assunto são seus efeitos especiais.

O destaque fica, é claro, para a maioria dos momentos em que algum poder de alquimia é utilizado. Seja vendo o ritual de ressurreição feito pelos irmãos Elric, a tão estilosa cena de Edward criando uma lança a partir dos tijolos no chão – que deixou muitos fãs babando desde os trailers do longa – ou na batalha final, é nesses momentos que “Fullmetal Alchemist” brilha, como todo bom filme de aventura pipoca que tanto gostamos de ver.

A escolha de cenário também merece uma boa dose de elogios. No lugar de tentar replicar com exatidão cada área mostrada no anime, o filme escolhe apenas passar a sensação estética da série, fazendo as gravações na região da Toscana, na Itália. Não há como negar que isso, sem muito esforço, consegue nos transportar para um tempo mais simples da Revolução Industrial, de maneira que se encaixa surpreendentemente bem a toda a trama.

Infelizmente, não demora muito para que os problemas visuais comecem a se sobressair. Enquanto alguns efeitos são interessantes, um número enorme de cenas sofre com ângulos de câmera ruins ou trabalhos de computação gráfica que deixam a desejar. Acredite quando dizemos, por exemplo, que você terá dificuldade de acreditar em qualquer soco desferido pelos personagens, de tão falsos que eles parecem, e que o automail de Edward simplesmente não convence ao se mover.

CG AlphonseAlphonse é bastante convincente. Mas só até começar a se mover

Além disso, é simplesmente impossível não notar, por exemplo, que há algo de errado com o CG da armadura de Alphonse, visto que ela tem um trabalho de iluminação pobre e uma movimentação sem peso; o mesmo vale para várias outras quimeras mostradas durante a trama. Em uma história que depende tanto disso para mostrar suas exóticas criaturas, é algo difícil de perdoar – e esses são apenas alguns dos vários detalhes notáveis na brincadeira.

O preço de uma história contada às pressas

Quanto à trama, é bom deixar um disclaimer: o live-action de Fullmetal Alchemist compreende apenas o primeiro terço da história total do mangá. Logo, seria de se esperar que isso desse respiro para a história. Infelizmente, esse não é o caso; de fato, é na maneira confusa, rasa e frequentemente desnecessária que o longa-metragem falha, trazendo uma experiência que parece não só mal pensada, como também feita às pressas.

Em boa parte, o culpado disso é o ritmo terrível com que o filme segue do início ao fim. O começo, por exemplo, é mostrado de maneira tão rápida que você provavelmente vai se perguntar o porquê da presença de personagens como o Pai Cornelio. Que dirá então de Marco, cuja presença no mangá é aqui reduzida a uma aparição de segundos, ou de personagens importantíssimos que aparentemente foram apagados.

Não pense que o problema de ritmo no live-action é só sua velocidade acelerada, contudo. Cada momento exageradamente rápido é intercalado por vários minutos de exposição – seja dos vários conceitos da Alquimia, das motivações (aqui rasas) dos personagens, dos eventos que levaram os personagens até ali... Enfim, se continuasse essa lista, teria que descrever dois terços do filme.

Mustang e HawkeyeA cena acima, mostrada logo no começo do filme, mostra bem a transição brusca entre as cenas apressadas e as arrastadas exposições da trama

Para piorar, é difícil não sentir que o longa esquece do que ele mesmo se trata em meio a tudo isso. Embora se dê ao tempo de apresentar algumas das cenas mais intensas de todo o anime, elas ocupam um espaço precioso da produção sem adicionar à trama principal, deixando a cara de um grande fan service. Como resultado, os momentos relevantes para a história parecem colocados de qualquer jeito e não conseguem construir a importância que deveriam.

Personagens intensos? Para quê?

Talvez isso tudo não fosse um problema tão notável se os atores ao menos fizessem um trabalho razoável como seus personagens. Com exceção de Ryôsuke Yamada, que consegue passar toda a fúria de Edward Elric em uma ou duas cenas, todos os outros coadjuvantes e vilões faltam terrivelmente em expressão, resultando em muitas cenas nas quais eles parecem apenas estar lendo suas falas casualmente – ou se encarando por longos instantes silenciosos e desconfortáveis.

Para quem é fã do mangá ou do anime, também é difícil não entrar em questões como a polêmica envolvendo a escolha do elenco, que sofreu basicamente um whitewashing às avessas. Se a obra original era, nas palavras da própria autora do mangá, baseada na Europa na era da Revolução Industrial, com direito ao uso de nomes alemães para quase todos os personagens, o live-action aposta apenas em atores japoneses com pouquíssima semelhança aos seus personagens nos quadrinhos.

Edward, Hawkeye e MustangQuando não fazem interpretações ridiculamente teatrais e pouco críveis, os personagens de Fullmetal Alchemist são pouquíssimo expressivos

Está bem, a decisão é até compreensível, já que conseguir um elenco totalmente ocidental geraria o problema contrário. Mas não dá para negar que o resultado disso, aliado à já mencionada inexpressividade dos atores, é estranho de ver – principalmente quando uma maioria esmagadora dos personagens só é reconhecível pelos trajes que está usando.

Vale a pena?

Diante de tudo isso, ao menos vale dizer que “Fullmetal Alchemist” nem de longe é o desgosto que vimos nos live-actions norte-americanos como o recente Death Note (2017) ou Dragonball Evolution. No entanto, o resultado ainda fica muito aquém do esperado, seja como uma adaptação para a série na qual é baseado ou como um longa-metragem.

Para fãs, Fullmetal Alchemist erra pela pouca fidelidade; para o resto, o longa falha em desenvolver o que há de importante apenas por fan service

Isso porque, para quem é fã de FMA, o live-action de “Fullmetal Alchemist” erra em quase todos os aspectos do que se espera na “fidelidade” da obra. Você vai ter dificuldade de reconhecer seus personagens favoritos em boa parte da história; a trama, por sua vez, deixa de lado vários momentos importantes e até mesmo ignora diversos aliados e antagonistas cruciais na trama – isso quando não passa cenas poderosas da obra de maneira totalmente trivial.

Já os problemas para aqueles que nunca viram “Fullmetal Alchemist” são outros. Embora a trama “retalhada” do live-action consiga contar o que há de mais importante nos mangás, ela se demora demais em pontos desnecessários. Mas pior: ela não dá tempo nem desenvolve os personagens para que você se importe com o que acontece com eles. Que o digam certas cenas (vocês sabem de quais estou falando, meus amigos otakus) que, nos animes, fizeram muita gente chorar, mas aqui mal nos afetam.

É claro; não posso deixar de notar que esse é apenas o começo da trama, e muitos podem dizer que essas falhas têm tudo para serem corrigidas nas possíveis sequências. Por outro lado, vejo exatamente o contrário: deixar de lado tantos elementos que eventualmente se tornariam extremamente importantes para a trama vai fazer com que seja ainda mais difícil mantê-la coerente.

Edward e Alphonse na chuva

Seja como for, o que importa é que “Fullmetal Alchemist” não alcançou todo o potencial da série em que baseou. Então, se você quer ver a obra de Hiromu Arakawa fora do papel, o melhor é ficar com o anime “Fullmetal Alchemist: Brotherhood”; afinal, ele também está disponível na Netflix e traz uma história muito mais fiel (e interessante) do que este live-action.

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